domingo, 7 de março de 2010

Um Homem de conhecimento.



Sábado, 8 de abril de 1962
Em nossas conversas, Dom Juan sempre usava ou se referia à expressão “homem de conhecimento”, mas nunca explicava o que queria dizer com isso. Perguntei-lhe a respeito.
- Um homem de conhecimento é aquele que seguiu honestamente as dificuldades da aprendizagem – disse ele.
Um homem que, sem se precipitar nem hesitar, foi tão longe quanto pôde para desvendar os segredos do poder e da sabedoria.
- Qualquer pessoa pode ser um homem de conhecimento?
- Não; não qualquer pessoa.
- Então o que é preciso fazer para se tornar um homem de conhecimento?
- O homem tem de desafiar e vencer seus quatro inimigos naturais.
- Ele será um homem de conhecimento depois de vencer esses quatro inimigos?
- Sim. Um homem pode chamar-se um homem de conhecimento somente se for capaz de vencer os quatro.
- Então, qualquer pessoa que conseguir vencer esses inimigos pode ser um homem de conhecimento?
- Qualquer pessoa que os vencer torna-se um homem de conhecimento.
- Mas há algum requisito especial que o homem tenha de atender antes de lutar contra esses inimigos?
- Não. Qualquer pessoa pode tentar tornar-se um homem de conhecimento; muito poucos homens o conseguem, realmente, mas isso é natural.
Os inimigos que um indivíduo encontra no caminho do saber para tornar-se um homem de conhecimento são realmente formidáveis; a maioria dos homens sucumbe a eles.
- Que tipos de inimigos são, Dom Juan?
Recusou-se a falar sobre os inimigos. Disse que se passaria muito tempo até que o assunto fizesse sentido para mim. Procurei manter a conversa e perguntei-lhe se ele achava que eu poderia tornar-me um homem de conhecimento. Respondeu que ninguém poderia dizer
isso ao certo. Mas eu insisti para saber se havia algum indício que ele pudesse usar para saber se eu tinha ou não possibilidade de me tornar um homem de conhecimento. Falou que dependia de minha luta contra os quatro inimigos – se eu conseguiria derrotá-los ou ser derrotado por eles – mas que era impossível prever o resultado dessa luta.
Perguntei-lhe se ele podia usar feitiços ou adivinhação para ver o resultado da luta.
Declarou claramente que os resultados da luta não poderiam ser previstos por meio algum, porque tornar-se um homem de conhecimento era uma coisa temporária. Quando pedi que ele explicasse isto, respondeu:
- Ser um homem de conhecimento não tem permanência. Nunca se é um homem de conhecimento, não de verdade. Ou antes, a pessoa se torna um homem de conhecimento por um instante muito breve, depois de derrotar os quatro inimigos naturais.
- Você tem de me dizer, Dom Juan, que tipo de inimigos eles são.
Não respondeu. Tornei a insistir, mas ele mudou de assunto e começou a falar sobre outra coisa.


Domingo 15 de abril de 1962
Quando eu estava me preparando para partir, tornei a lhe perguntar acerca dos inimigos do homem de conhecimento. Argumentei que ia passar algum tempo sem voltar, e que seria uma boa idéia escrever as coisas que ele tivesse a dizer e pensar a respeito enquanto estivesse fora. Hesitou um pouco, mas depois começou a falar:
- Quando um homem começa a aprender, ele nunca sabe muito claramente quais seus objetivos. Seu propósito é fumo; sua intenção, vaga. Espera recompensas que nunca se materializarão, pois não conhece nada das dificuldades da aprendizagem.
“Devagar, ele começa a aprender… a princípio, pouco a pouco, e depois em porções grandes. E logo seus pensamentos entram em choque. O que aprende nunca é o que ele imaginava, de modo que começa a ter medo. Aprender nunca é o que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma nova tarefa, e o medo que o homem sente começa a crescer impiedosamente, sem ceder. Seu propósito torna-se um campo de batalha.
“E assim ele se deparou com o primeiro de seus inimigos naturais: o Medo! Um inimigo terrível, traiçoeiro, e difícil de vencer. Permanece oculto em todas as voltas do caminho, rondando, à espreita. E se o homem, apavorado com sua presença, foge, seu inimigo terá posto um fim à sua busca.
- O que acontece com o homem se ele fugir com medo?
- Nada lhe acontece, a não ser que nunca aprenderá. Nunca se tornará um homem de conhecimento. Talvez se torne um tirano, ou um pobre homem apavorado e inofensivo; de qualquer forma, será um homem vencido. Seu primeiro inimigo terá posto um fim a seus desejos.
- E o que pode ele fazer para vencer o medo?
- A resposta é muito simples. Não deve fugir. Deve desafiar o medo, e, a despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e o seguinte. Deve ter medo, mente, e no entanto não deve parar. É esta a regra! E o momento chegará em que seu primeiro inimigo recua. O homem começa a se sentir seguro de si. Seu propósito torna-se mais forte. Aprender não é mais uma tarefa aterradora. Quando esse momento feliz, o homem pode dizer sem hesitar que derrotou seu primeiro inimigo natural.
- Isso acontece de uma vez, Dom Juan, ou aos poucos?
- Acontece aos poucos e no entanto o medo é vencido da repente e depressa.
- Mas o homem não terá medo outra vez, se lhe acontecer alguma coisa nova?
- Não. Uma vez que o homem venceu o medo, fica livre dele o resto da vida, porque, em vez do medo, ele adquiriu a clareza de espírito que apaga o medo. Então, o homem já conhece seus desejos; sabe como satisfazê-los. Pode antecipar os novos passos na aprendizagem e uma clareza viva cerca tudo. O homem sente que nada se lhe oculta.


“E assim ele encontra seu segundo inimigo: a Clareza! Essa clareza de espírito, que é tão difícil de obter, elimina o medo, mas também cega.
“Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a segurança de que ele pode fazer o que bem entender, pois ele vê tudo claramente. E ele é corajoso porque é claro e não pára diante de nada porque é claro. Mas tudo isso é um engano; é como uma coisa incompleta. Se o homem sucumbir a esse poder de faz-de-conta, sucumbiu a seu segundo inimigo e tateará com a aprendizagem. Vai precipitar-se quando devia ser paciente, ou vai ser paciente quando devia precipitar-se. E tateará com a aprendizagem até acabar incapaz de aprender mais qualquer coisa.
- O que acontece com um homem que é derrotado assim, Dom Juan? Ele morre por isso?
- Não, não morre. Seu inimigo acaba de impedi-lo de se tornar um homem de conhecimento; em vez disso, o homem pode tornar-se um guerreiro valente, ou um palhaço.
No entanto, a clareza, pela qual ele pagou tão caro, nunca mais se transformará de novo em trevas ou medo. Será claro enquanto viver, mas não aprenderá nem desejará nada.
- Mas o que tem de fazer para não ser vencido?
- Tem de fazer o que fez com o medo: tem de desafiar sua clareza e usá-la só para ver, e esperar com paciência e medir com cuidado antes de dar novos passos; deve pensar, acima de tudo, que sua clareza é quase um erro. E virá um momento em que ele compreenderá que sua clareza era apenas um ponto diante de sua vista. E assim ele terá vencido seu segundo inimigo, e estará numa posição em que nada mais poderá prejudicá-lo. Isso não será um engano. Não será um ponto diante da vista. Será o verdadeiro poder.


“Ele saberá a essa altura que o poder que vem buscando há tanto tempo é seu, por fim.
Pode fazer o que quiser com ele. Seu aliado está às suas ordens. Seu desejo é a ordem. Vê tudo o que está em volta. Mas também encontrou seu terceiro inimigo: o Poder!
“O poder é o mais forte de todos os inimigos. E naturalmente a coisa mais fácil é ceder; afinal de contas, o homem é realmente invencível. Ele comanda; começa correndo riscos calculados e termina estabelecendo regras, porque é um senhor.
“Um homem nesse estágio quase nem nota seu terceiro inimigo se aproximando. E de repente, sem saber, certamente terá perdido a batalha. Seu inimigo o terá transformado num cruel e caprichoso.
- E ele perderá o poder?
- Não, ele nunca perderá sua clareza nem seu poder.
- Então o que o distinguirá de um homem de conhecimento?
- Um homem que é derrotado pelo poder morre sem saber manejá-lo.
Um homem desses não tem domínio sobre si, e não sabe quando ou como usar seu poder.
- A derrota por algum desses inimigos é uma derrota final?
- Claro que é final. Uma vez que esses inimigos dominem o homem, não há nada que ele possa fazer.
- Será possível, por exemplo, que o homem derrotado pelo poder veja seu erro e se emende?
- Não. Uma vez que o homem cede, está liquidado.
- Mas, e se ele estiver temporariamente cego pelo podar, e depois o recusar?
- Isso significa que a batalha continua. Isso significa que ele ainda está tentando ser um homem de conhecimento. O indivíduo é derrotado quando não tenta mais e se abandona.
- Mas então, Dom Juan, será possível que um homem se entregue ao medo durante anos, mas que no fim ele o vença.
- Não, isso não é verdade. Se ele ceder ao medo, nunca o vencerá porque se desviará do conhecimento e nunca mais terá. Mas se procurar aprender durante anos no meio do medo, acabará dominando-o, porque nunca se entregou realmente a ele.
- E como o homem pode vencer seu terceiro inimigo, Dom Juan?
- Também tem de desafiá-lo, propositadamente. Tem de vir a compreender que o poder que parece ter adquirido, nunca é seu. Deve controlar-se em todas as ocasiões, Com cuidado e lealdade tudo o que aprendeu.



Então, saberá quando e como usar seu poder. E assim terá derrotado seu terceiro inimigo.
“O homem estará, então, no fim de sua jornada do saber, e quase sem perceber encontrará seu último inimigo: a Velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, o único que ele não conseguirá derrotar completamente, mas apenas afastar.
“É o momento em que o homem não tem mais receios, não tem mais impaciências de clareza de espírito… um momento em que todo seu poder está controlado, mas também o momento em que ele sente um desejo irresistível de descansar. Se ele ceder completamente a seu desejo de se deitar e esquecer, se ele se afundar na fadiga, terá perdido o último round, e seu inimigo o reduzirá a uma criatura velha e débil. Seu desejo de se retirar dominará toda sua clareza, seu poder e sabedoria.
“Mas se o homem sacode sua fadiga, e vive seu destino completamente, então poderá ser chamado de um homem de conhecimento, nem que seja no breve momento em que ele consegue lutar contra o seu último inimigo invencível. Esse momento de clareza, poder e conhecimento é o suficiente.”

A Erva do Diabo, de Carlos Castaneda